coníferas

André Almeida e Souza

From April 19 to June 14, 2024

CONÍFERAS, A SEBE E O CAMINHO ENTRE O CÉU E A TERRA
Flávia Germano Barra

Para o André … 

NOTA PRÉVIA: 
Falar de Coníferas é dizer pelo lado de dentro de uma amizade. Conheci-te em Lisboa. Partilhámos “o estrangeiro” que somos, as saudades de casa. Mordemos conversas imperfeitas sobre a dor, a morte e o amor. Fomos colecionando os instantes felizes – fajãs e jacintos, araucárias e salgueiros, línguas escarlate e torricado com lascas de bacalhau. 
A sebe: empilhámos à mão tantas pedras de basalto quantas protegem as vinhas do Pico.  
O caminho: colocadas lado a lado, as mesmas pedras descreveriam por duas vezes a linha do equador. 

Escrever este texto foi um abalo. De derrocada em derrocada, nenhuma ideia se manteve por si mesma. Quando o texto tentou ser, rechaçou numa ausência.  

É portanto desse ausente que te falo: o avistamento dos ciprestes à tua janela. A única imagem, que não estando presente nesta exposição, permanece. 

Podias ter sido tu a dizer isto: 

“E a luz filosófica na minha janela é agora a minha alegria. Quem me dera guardar o modo como até aqui cheguei!”1

É nessa imagem, que tantas vezes partilhas comigo, que te vejo perseguido pelos Deuses, nos quais dizes ter deixado de acreditar. Que maior prova da sua existência?2

É por via dessa sebe de Ciprestes que a sombra do mármore te acerta e o caminho se vislumbra. A tua obra surge dessa experiência de não te poderes desembaraçar daquilo que te pertence, de não poderes deixar de obedecer a uma evidência: a inquietação de estar vivo, de estar vivo desta ou daquela maneira, assim só. Até os Deuses gostam de se3 divertir André! Dados à sua imortalidade, desconhecem absolutamente o que é ser aqui, um ser para a morte.4 5

Coníferas expõe-te no descobrimento que fazes dessa descontinuidade, tantas as diferenças que existem entre estar vivo e perceber que se está vivo. Convêm-te o caminho, a paisagem, as coisas que encontras por aí. Arames, e cordas, as cores da pedra, sapatos desatados, e o polegar enorme e oponível aos seios daquela mulher. Todos motivos-imagem com os quais transformas o desajustamento e tentas a imortalidade só por mais um dia. As tuas peças sem título, são as hipóteses da fragilidade, motivos imorredouros porque tu, o homem, a dar-se conta dessa advertência que é estar aqui, entre o céu e terra, por uma vez só.  

A tua obra vive de morrer.  

A matéria é o vício, a obsessão maníaca e secreta de tentares o fim de tudo o que existe: o esquecimento de ti próprio para conseguires algo mais. Esquecimento com o qual inauguras o gesto selvagem sobre as coisas e tentas o disfarce, a ilusão e o bluf – mais matéria. A ideia de reencarnar num outro animal qualquer feito de cola e gesso sobre tela. Eis os corpos superados ao risco, aos ventos fortes, a todos os poentes e à escuridão do mundo. Tudo lançado à cortina do eremitério e chegado aqui. 

Tal como a Natureza abandona os seres  
ao risco do seu prazer abafado sem que nenhum  
Seja especialmente protegido, nas glebas e ramadas,  
assim também nós não temos, do mais profundo do nosso ser,  
uma atenção especial; ele põe-nos em risco. Só que nós,  
mais ainda do que a planta ou o animal,  
vamos com o risco, queremo-lo, e por vezes também arriscamos mais (e não por interesse próprio), do que a própria vida, arriscamos  
por um sopro mais… Isto, concede-nos, fora da protecção,  
um estar seguro, aí onde actua a força da gravidade  
das forças puras; o que por fim nos abriga,  
é o nosso desamparo, e que  
ao aberto assim o virámos, vendo-o ameaçar,  
para que, algures no círculo mais vasto,  
onde a lei nos toca, o aceitemos.6

Esta exposição, Coníferas, apresenta-se no seu viver original como uma interrogação poética. As peças são o modo de guardares o caminho. Matérias arrancadas ao desamparo onde te lanças para mais um sopro e ensaias a resposta  quando a lei te toca.  

É o riso de Deus que colocas sobre nós, numa garra de cartão.  

Por fim, varres as cinzas e pagas a conta. 

1Hölderlin, Carta a Boehlendorf, 2 de Dezembro de 1802. 
2Os Cavaleiros de Aristófanes, onde um dos Servidores justifica a sua crença nos Deuses. 
3Comentário de Wittgenstein sobre o Ramo Dourado de Frazer, referido por Maria Filomena Molder em A Imperfeição da Filosofia.  
4Platão, Crátilo, Ver dados sobre este diálogo platónico.  
5Dasein, Ser e Tempo, Martin Heidegger. 
6Rilke, Poemas Tardios em Antologia Poética, 1935.